Férias, paragem? – Desafio perante a realidade
As férias deste ano chegaram ao fim. Duraram pouco? Mas deram para tantas coisas! Entre estas, partilhar convosco uma grande preocupação – a que me é suscitada pela situação dos nómadas portugueses.
Foram tempo de pensar, de refletir, de oração; tempo de fazer trabalhos em atraso e que bom chegar ao fim de cada um! Tempo de preparar o próximo ano letivo; tempo de caminhadas à beira-mar, de me maravilhar com as conchas e as formas caprichosas das pedras que o mar nos traz; tempo de ver plantas, de me encantar com a diversidade de flores; tempo de olhar o céu, à noite. E lá está Saturno enigmático, brilhante, guardando segredos. Tempo para apanhar, na passagem, a Estação Espacial, que prossegue rápida a sua marcha.
Foi tempo de me encantar com o pessegueiro do quintal. Centenas de frutos! E todos bonitos, bons. Foi tempo de ver animais: apreciar a inteligência e a alegria de uns, de ver outros atarefados, buscando alimentos; tempo de recordar as cegonhas e as andorinhas que partiram antes que o calor se vá; tempo para fazer aproximações silenciosas, cautelosas, às gaivotas.
Foi tempo de conversas descuidadas; tempo de recordar os que partiram definitivamente; tempo de telefonar aos amigos que não vejo há muito, de encurtar distâncias; tempo de receber S.O.S’s, de me interessar pelos conteúdos, de atuar. Tempo de proceder a leituras adiadas, em espera, sendo uma delas o livro “Órfã de Pais Vivos” de Maria de Jesus S. Serrano.
Pois ia eu já na página 288 deste, quando encontrei ali uma citação de Mano Brown: “Quando a caminhada fica dura, só os duros continuam a caminhada” e dei comigo a pensar, a partir dela, nos ciganos portugueses. E vieram à minha memória as páginas de introdução a um livro nosso, SDL, em que se visualiza, condensada, a legislação persecutória àqueles, ao longo de mais de trezentos anos, ao fim dos quais foram reconhecidos como portugueses.
Assim nos aparece:
– D. João III – 1538: “… que nenhum cigano, assim homem como mulher, entre em meus reinos e senhorios…” e “…entrando sejam presos e publicamente açoutados com baraço e pregão”
– Regência de D. Catarina – 1557: repete-se a ordem de expulsão e acrescenta-se a pena de condenação às galés para os que não obedecerem.
– D. Sebastião – 1573: repete as determinações anteriores, mas acrescenta que as mulheres não podem ser condenadas às galés, sendo-lhes aplicadas todas as outras penas.
– D. Henrique – 1579: determina que se façam pregões em todos os lugares públicos, ordenando que os ciganos saiam do reino dentro de 30 dias; acrescenta que “qualquer um que seja achado fora deste tempo seja logo preso e açoitado publicamente no lugar onde for achado e degredado para sempre para as galés”.
– Filipe I – 1592: faz nova ordem de expulsão do reino, a cumprir no prazo de 4 meses. Em alternativa, os ciganos deveriam fixar residência e deixar a vida nómada. Determina a pena de morte, sem apelo nem agravo, para todos os que se encontrassem, depois daquele prazo, a vagabundear pelo reino.
– Filipe II – 1606: verificando-se o não cumprimento das leis anteriores, determinava-se novamente a expulsão dos ciganos. Acrescentava-se para os prevaricadores, a pena de degredo e condenação às galés.
– Filipe II – 1613: proibição de aceitar os ciganos como residentes no reino e determinação da expulsão de todos os que aí se encontrassem, no prazo de 15 dias; acrescentavam-se penas idênticas às anteriores.
– D. João IV – 1647: autorização para que os ciganos pudessem fixar residência nas seguintes localidades: Torres Vedras, Leiria, Ourém , Tomar, Alenquer, Montemor -o- Velho e Coimbra. Ficavam, no entanto, proibidos de falar a sua língua e de a ensinarem aos filhos, bem como de usarem os seus fatos. Determinava-se ainda a obrigatoriedade de trabalharem. E os filhos com mais de 9 anos seriam tirados aos pais, indo servir para casas de não ciganos.
– D. João IV – 1650: os ciganos foram aceites para servir nas fronteiras, respeitando as normas de fixação já impostas; determinava-se a pena de condenação às galés para os homens e degredo para Cabo Verde e Angola para a s mulheres que não cumprissem a lei.
– D. João IV – 1654: ordem de prisão para todos os ciganos que fossem encontrados no reino a vadiar.
– D. Pedro II – 1689: os ciganos nascidos no reino eram novamente proibidos de vagabundear ou trazer trajes ciganos; deveriam fixar-se e viver como os restantes naturais do reino. Pena de morte para os incumpridores.
– D. João V – 1707: decreto de expulsão de todos os ciganos do reino.
– D. João V – 1708: nova decisão de expulsão, mas aceitando que os ciganos nascidos no reino e sedentarizados pudessem ficar.
– D. João V – 1718: ordem geral de prisão e degredo para a Índia aos prevaricadores.
– D. João V – 1745: nova lei de expulsão.
– D. José – 1751: repetição das leis de expulsão total.
– D. José – 1756: decretada pena de prisão a todos os ciganos perturbadores da ordem; obrigatoriedade de trabalharem nas obras públicas da cidade, até haver navios que os transportassem para Angola.
– D. Maria – 1800: nova perseguição aos ciganos. Determinação que se lhes retirassem as crianças, que seriam entregues à Casa Pia.
Foi necessário esperar a revolução liberal para se verificar uma alteração de fundo. Com efeito em
– 1822 – era concedida a cidadania a todos os ciganos nascidos em Portugal.
– 1852 – não se podem condenar apenas por serem ciganos. Serão objeto de tratamento igual ao da restante população e as condenações deverão decorrer dos actos praticados e não da etnia a que pertencem.
– 1920 – consagra-se “…a igualdade do ponto de vista jurídico”.
No entanto, este conceito de igualdade era aplicado com reservas para os grupos considerados de risco. Por isso se determinou também “… Prevenção, relativamente a ciganos… vadios, mendigos, loucos, meretrizes, rufiões…”.
Só em 1985 foi revogada a lei de 1920
Enfim, a atual Constituição da República Portuguesa consagra, no seu artigo 13, que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, língua, território de origem, religião, convicções politicas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social”.
Sintetizámo-la para vermos como foram impedidos de se avizinhar, de serem ajudados por gente de boa vontade, mesmo quando não foram expulsos para além das fronteiras; como foram condenados aos açoites, à morte, às galés, sendo obrigados a remar sem percurso decidido por eles, horas a fio, fustigados pelo chicote; como foram desterrados para continentes longínquos; como lhes foram retirados os filhos.
Mas finalmente chegava o momento de não poderem ser castigados pelo facto de serem ciganos.
E abro aqui um parêntesis para vos contar qual a resposta de uma menina de quatro anos, já neste ano, quando lhe perguntaram porque é que ela era cigana. A criança pensou e respondeu na sua inocência: “porque eu nasci da barriga da minha mãe que também é cigana”.
Verdade simples, incontornável. Será crime?
Mas voltemos à lei, às leis.
Não podiam mais ser castigados por nascerem ciganos. E continuaram a nascer. Mas acontece que a nossa Constituição atual não menciona a “palavra”. Somos todos portugueses e basta. Nada de distinções.
Só que os descendentes dos ciganos perseguidos até ao Séc. XIX são reconhecidos como tais. Isso é natural, nem eles se importam. Mas o que é mesmo estranho, inacreditável, é que os que até ao Séc. XXI se têm mantido em nomadismo, digamos, de miséria, sem qualquer apoio do Estado, sem parques com condições para acampar, são impedidos ainda atualmente, por posturas municipais, de se fixarem. São obrigados a continuar errantes. Quem os proíbe? Quem os defenderá? Quem se debruça sobre este problema? Quem o enfrenta? Quem o estuda com os próprios? Quem enceta o diálogo com boa e decidida vontade de abrir caminhos de esperança para os que têm de permanecer fora dos concelhos, à margem? E reparem, estes proscritos são pessoas, são portugueses, são irmãos, porque filhos de Deus.
A caminhada tem sido muito dura, mas os duros continuam a caminhar. Vamos experimentar acompanhá-los? Quem se oferece?
Quem “embarca” nesta aventura?
Conto contigo, consigo, convosco.
Fernanda Reis
Setembro, 2016